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Release RELIGARE

Religare, o conceito

Religare. Palavra que nos remete a uma reconexão com o divino, à reativação dos estados de elevação e purificação do espírito, à recomposição de uma unidade perdida entre matéria e símbolo, razão e sensibilidade, superfície e essência. O novo espetáculo da Edisca é essa dança com o invisível, o intangível, o mágico, o encantado, os comportamentos rituais, os dispositivos cerimoniais e festivos que suspendem o tempo e nos religam ao próprio ato de criação, ao que antecede à consciência e está intimamente ligado a nós mesmos, ao elo ancestral que nos iguala enquanto seres vivos sem que saibamos ou precisemos classificá-lo.

Religare, o balé, diz, assim, sobre a possibilidade e urgência desse reencontro do homem com forças criadoras capazes de emprestar sentido ao vazio e ao absurdo da existência, apontando para a superação de aprisionamentos do presente e de processos de dominação e padronização do viver que formatam sujeitos passivos e anestesiados diante do sequestro da vitalidade social. Dançar não para buscar salvação ou consolo metafísico, esperando que venha do alto soluções para o esgotamento e os conflitos existenciais terrenos. Mas para vislumbrar no aqui e agora possibilidades de uma redenção transformadora a partir da capacidade que cada um carrega em si para reinventar-se, fazendo irromper uma ética deflagradora de novos modos de conviver, inventar, agir, pensar, experimentar o próprio corpo, partilhar o sensível.

Contra o poder sobre a vida, a aposta na potência de vida. E no retorno a formas de existência e convivência mais simples, mais cooperativas, mais igualitárias, mais justas, mais livres, mais honestas. A Edisca foi buscar no sujeito ancestral e primitivo a retomada desses valores e de uma lógica inteiramente distinta daquela que a subjetividade moderna nos propõe. Daí o foco nas matrizes e culturas étnicas, em suas simbologias, em seus códigos ritualísticos, nos fazeres e saberes que perpassam gerações e se propagam ao longo dos tempos. Índia, África, Oriente Médio. Anjos, santos, alegorias. A etnicidade e a diversidade cultural abrindo passagem para a percepção sensível do mundo, para o universo paralelo da imaginação. Imaginação que é política quando capaz de instituir novos sentidos para a vida à revelia do visível, da ordem estabelecida, do que parece imutável, natural, impossível de mudar.

Existir de uma outra maneira, esculpir com arte a própria vitalidade, estabelecendo uma relação de maior comprometimento com a vida, a partir de utopias tornadas possíveis, de uma dança coletiva híbrida, intuitiva e delicada.

Religare, o espetáculo

Conteúdo indissociável da forma. De um lado, a sofreguidão de corpos exaustos, adoecidos, abatidos pelo niilismo contemporâneo. Do outro, a estética da existência como bálsamo e êxtase, anunciando o porvir, as pequenas luzes, aquilo que dança na escuridão e exige ser revalorizado, reacendido, reintegrado ao ser e ao mundo. Em Religare, os coreógrafos Dora e Gilano Andrade reativam a memória ancestral para pensar sob holofotes a depreciação da vida no presente. Lado a lado, criam coreografias entrelaçadas e complementares: se vem dele a dança cáustica e crítica frente ao esgotamento dos modelos civilizatórios que, em escala planetária, dão a ver paisagens de abandono, desolação, miséria e sofrimento, vem dela o sentido de redenção e o acento de esperança colados a cada giro, cada gesto, cada salto que se anunciam como promessas para a conquista individual e coletiva de planos existenciais mais intuitivos, fluidos, porosos, translúcidos, iluminados.

Em uníssono, ambos desenham no ar movimentos que apontam para a vitalidade superior, fazendo vibrar através de um corpo de baile infanto-juvenil oriundo da periferia da cidade a urgência em imaginar e construir uma outra cosmologia dos seres, onde o que nos tornamos não pode negar ou sufocar o que ainda podemos vir a ser. No palco, 39 bailarinos e bailarinas da Edisca dançam entre imagens icônicas de peso e leveza, ora na pele de anjos humanizados e divindades estilizadas, ora na condição-limite de inferioridade e apagamento de presidiários aniquilados em rebeliões ou índios massacrados pelas leis do capital. Recobrindo o todo, a força vital e mística de múltiplas etnias que encontram nos rituais, nas cerimônias religiosas e nos estados de transe seus exercícios de espiritualidade, seus modos de transcendência, reverência e comunicação com os processos subjetivos de ressignificação da realidade.

Para realçar o Uno e o transcendental no humano, a cor branca prevalece sobre os figurinos de Religare. Partindo de uma base neutra e de um corpete comum, a ideia original de Cláudia Andrade se apoia na sobreposição de peças e no toque criativo dos adereços, sobretudo os de mãos e cabeças, para conferir majestade às mais diversas representações do divino colocadas em cena, que vão desde orixás, xamãs, índios e espíritos da floresta até a releitura da própria imagem de Nossa Senhora. Assinando a adereçaria, Gil Braga enfatiza o trabalho em torno da miríade de cores visíveis e invisíveis refratadas através do branco, o que remete justamente à pluralidade de olhares que diferentes civilizações e etnias fundam diante do mistério da criação e de um plano de imanência. Assim, seu desafio foi cruzar ancestralidade e contemporaneidade a partir de materiais sintéticos capazes de gerar texturas e volumes em torno de corpos enredados por elásticos, onde frisos e listras tanto podem remeter a armaduras medievais como às pinturas tribais dos povos antigos.

Com 45 minutos de duração, Religare também concentra na musicalidade sua potência de revisão e reconexão com os estados de alma fundamentais. Coube a Manassés de Sousa o trecho autoral que casa o erudito à música oriental e enseja toda a montagem combinatória de timbres étnicos responsável pela atmosfera imemorial e o sabor arcaico do balé. Habitar fragmentos sonoros de épocas passadas para ouvir os rumores comuns do tempo presente, eis a premissa que está por traz de sons, ruídos e silêncios amalgamados. E se é em torno do que esquecemos de ser e do laço social perdido que Religare gira, tudo foi afinado para que a arte apareça como força redentora, afirmando a vida bela. Para a afinadora do espetáculo, Claudia Andrade, tempo, movimento, música, figurino, cenário, corpos, tudo isso junto e harmonizado, diz sobre a capacidade e a necessidade que cada um tem de eleger e reativar o seu ‘religare’, aquele dispositivo pessoal e intransferível de superação e aperfeiçoamento de si, que tanto pode estar na religião ou na filosofia, assim como no livre pensar e na invenção cotidiana e sem cálculo do porvir. Religare, portanto, é uma obra aberta, suscetível a muitas associações abstratas, capturas, desdobramentos, entradas e saídas subjetivas de caráter demasiado humano.

 

Serviço:

Dias 04 a 06 e 11 a 13 de setembro de 2015 no Teatro Via Sul

Às sextas-feiras às 21h, sábados às 18h e 21h, e domingos às 18h e 20h

Bilheteria Via Sul: (85) 3048-1262

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